Reflexões de Abril

- A reforma agrária<br>em quatro registos literários

Domingos Lobo

 Nunca vi um alen­te­jano cantar so­zinho, es­crevia des­lum­brado esse poeta dos ra­ci­o­nais afectos e da rein­venção me­ta­fó­rica que foi José Gomes Fer­reira. Ou o Raul de Car­valho, fa­lando-nos da sua Vila de Al­vito, onde foi criado e dos se­nhores que a opri­miam; dos medos e so­bres­saltos do Alen­tejo pro­fundo, do­rido e re­sis­tente que o Ma­nuel da Fon­seca ins­creveu em Cer­ro­maior, Al­deia Nova e nesse in­con­tor­nável ro­mance que é Seara de Vento. Ou a canção pa­to­leia que Ur­bano Ta­vares Ro­dri­gues es­creveu para a voz de Adriano Cor­reia de Oli­veira: Ó Alen­tejo dos po­bres/​Reino da de­so­lação/ Não sirvas quem te des­preza/É ​tua a tua nação. Até esse ro­mance mo­delar da nossa re­vo­lução, inau­gural de uma obra maior, cuja guin­daria o seu autor ao Nobel da li­te­ra­tura: Le­van­tado do Chão, de José Sa­ra­mago. «Isto é um livro sobre o Alen­tejo», afirmou Sa­ra­mago. Livro sobre a vida, a luta e a morte; sobre a apren­di­zagem de uma re­vo­lução que se fazia, de modo trans­for­mador e exem­plar, nos campos so­fridos desse es­paço de «suor e pão». Um livro que quis apro­ximar-se da vida, do chão de es­pe­rança de onde os ho­mens e as mu­lheres que fi­zeram «a mais bela das con­quistas de Abril», um dia se qui­seram er­guer. O livro em que se ex­pressa, em ple­ni­tude, o es­tilo iden­ti­tário do autor de Me­mo­rial do Con­vento. A minha 1.ª edição desse mag­ní­fico ro­mance de Sa­ra­mago contém, para além do au­tó­grafo do autor e de Vasco Gon­çalves, de­di­ca­tória à fa­mília Ba­suga e à me­mória de Ger­mano Vi­digal e José Ade­lino dos Santos, ambos as­sas­si­nados. A estes, e a Ca­ta­rina Eu­fémia, se jun­taram An­tónio Maria Cas­quinha e José Ge­raldo «Ca­ra­vela». Todos eles tom­bando no seu chão alen­te­jano, as­sas­si­nados pelos se­nhores do medo, do terror, da ig­no­mínia – da ne­gação da vida. As­sas­si­nados pelo crime de que­rerem per­tencer a uma terra que fosse de todos, ampla e in­teira, um chão onde o fruto ger­mi­nasse, o pão cres­cesse e a vida, a dig­ni­dade de estar vivo e ser hu­mano, na­tu­ral­mente se cum­prisse. Assim não qui­seram os se­nhores do poder, assim não dei­xaram os es­birros, os ser­ven­tuá­rios, os ser­vi­dores de seus amos. 

O poeta Fi­lipe Chi­nita fala-nos, num épico sen­sível e cer­teiro, num texto que per­corre a gesta desses mo­mentos altos de Abril: «Gente Povo Todo o Dia», diz a aven­tura maior da nossa mo­der­ni­dade cí­vica e po­lí­tica que foi a Re­forma Agrária; em «Can­tata Pranto e Louvor», texto, igual­mente, de Chi­nita, do qual Ma­nuel Gusmão é co-autor, é um ré­quiem pelos que tom­baram – emo­tivo, pun­gente de in­dig­nação face ao crime que narra –, por esse tempo da ale­gria, fra­terno e in­teiro. Um longo poema que é o li­breto – como o era já Os Dias Le­van­tados, que Ma­nuel Gusmão es­creveu para a mú­sica de An­tónio Pinho Vargas – pos­sível para uma ópera, ou para um cante trans­fi­gu­rado pelas vozes do­lentes e ex­pres­sivas dos can­ta­dores alen­te­janos. Neste épico se er­guem como pro­ta­go­nistas, agentes da acção e do trá­gico, as vozes de Cas­quinha e Ca­ra­vela, do Nar­rador, esse ele­mento que su­blinha a his­tória dos dias da ver­gonha, nos des­creve passo a passo a bar­bárie, fa­zendo-o com co­me­dida eco­nomia, es­crita no osso, por onde a téc­nica de dis­tan­ci­ação bre­ch­tiana a es­paços se in­troduz, e o Coro, esse ele­mento co­lec­tivo que trans­porta o poema para a voz do arauto que de­nuncia, que ques­tiona, que nos ques­tiona e se in­ter­roga per­plexo face à in­fâmia – sendo, a um tempo, Coro de te­atro grego, ora o «nós» co­lec­tivo tão caro à es­té­tica neo-re­a­lista. E é esta sim­biose que es­tru­tura o poema, o am­plia de múl­ti­plas res­so­nân­cias e o sin­gu­la­riza.

Esta fala, o cui­dado da sin­taxe, a forma ino­va­dora de um texto que nele ins­creve sim­bó­lico e re­flexão, retém os ex­cessos e o ar­ti­fício, per­corre o his­tó­rico no seu húmus, nos seus re­fluxos mais pun­gentes, na sua ex­tensa e as­su­mida in­ter­tex­tu­a­li­dade, com a re­volta con­tida mas pre­mente: com as pa­la­vras mo­de­lares, sig­ni­fi­cantes na pu­ri­dade do subs­tan­tivo rasgo que as en­volve. Os au­tores sabem que o grito é pas­sa­geiro, que a re­volta maior, a que per­dura, vem da razão, do es­con­juro, do pe­rene rumor que a edi­fica. É a se­re­ni­dade deste texto, desta Can­tata de evo­cação sen­tida, que mais de­mo­ra­da­mente nos toca e ab­sorve; é a in­jus­tiça nele im­plí­cita que nos in­digna e leva à re­jeição ra­ci­onal do crime que de­nuncia e das mo­ti­va­ções po­lí­ticas e so­ciais que es­ti­veram na sua gé­nese: jus­tiça é o clamor que sobe/​da terra onde caímos/e fica a vi­brar nos corpos/​que sobre ela se aba­teram/​a man­dado dos se­nhores/​à falsa fé e sem re­médio.

Um dia virá, mais cedo que tarde, em que será de novo pos­sível «er­guer a voz e cantar». Es­cu­temos a úl­tima fala de Cas­quinha neste Can­tata Pranto e Louvor, à qual os au­tores jun­taram um fa­moso verso de Paul Vail­lant-Cou­tu­rier: já não mais serei eu,/​pais e amigos meus/​já a mim me rou­baram/​a vida in­teira/​que era meu di­reito viver/​já não mais me abra­ça­reis/​não mais sen­tirei no abraço/​o meu e os vossos corpos/​que firmes ocupam es­paço/​a minha ju­ven­tude era eu/​a crescer es­pan­tado/​p’ra minha maior ale­gria/​na be­leza do mundo/​se agora/​já não posso morar/​na vossa me­mória/​então não me es­queçam/​não me deixem so­zinho/​lem­brem-se dos ban­didos/​lem­brem-se que o co­mu­nismo/​é a ju­ven­tude do mundo.

Num outro re­gisto, ali­cer­çado no fac­tual desses anos de brasa, per­pas­sado de ele­mentos vastos e his­tó­ricos sobre o pro­cesso da re­forma agrária, seu início, lutas e vi­tó­rias, o livro Se­aras Ver­me­lhas de Abril, de Fran­cisco do Ó Pa­checo, é um ro­mance/​cró­nica sobre a me­mória, um pun­gente, sen­tido re­lato – emo­tivo, cer­teiro e justo – sobre a con­quista da terra por aqueles que sempre a tra­ba­lharam, por aqueles que, mais do que nin­guém, jus­ta­mente a me­recem, dado que as coisas devem per­tencer a quem cuida bem delas, como nos diz uma per­so­nagem da peça O Cír­culo de Giz Cau­ca­siano, de Brecht.

Fran­cisco do Ó Pa­checo cria, neste livro, uma es­tória de afectos, de cum­pli­ci­dades, de ampla e fra­terna so­li­da­ri­e­dade. Ale­grias, lutas, de­sâ­nimo e von­tade, con­jugam-se neste épico para des­crever o que foram esses dias, fa­zendo-o de modo es­cor­reito, sem re­cursos li­te­rá­rios es­cusos. O autor li­mita a nar­ra­tiva, de um re­a­lismo ab­sor­vente, à cró­nica dessa re­vo­lução es­sen­cial, desses dias mai­ores da nossa força, dos tempos em que o 25 de Abril chegou aos campos do Alen­tejo e tudo ficou di­fe­rente.

Temos de ser assim, ca­ma­radas. Já criámos mais de mil postos de tra­balho per­ma­nentes na nossa re­gião. Tra­ba­lhámos vá­rios mi­lhares de hec­tares de terra. (...) A terra não é nossa. A terra é de quem a tra­balha e quem a quiser tra­ba­lhar terá sempre di­reito ao seu bo­cado de terra. Assim ter­mina, deste jeito po­lí­tica e so­ci­al­mente cor­recto, o re­lato que Fran­cisco do Ó Pa­checo nos traça da Re­forma Agrária.

O Povo, por muito que os arautos do ne­o­li­be­ra­lismo tentem me­nos­prezar a luta his­tó­rica nos campos do Alen­tejo, o seu pro­fundo sig­ni­fi­cado po­lí­tico, so­cial e eco­nó­mico, guar­dará a me­mória desses dias, esse tempo pleno e digno, para cantar nas vendas, nas tascas, na roda das fo­gueiras, nas se­aras de trigo a ama­du­recer ao sol. Estes li­vros são desse Povo, ins­crevem a sua his­tória, a sua luta. Para que se não es­queça.

Le­van­tado do Chão, de José Sa­ra­mago – Ca­minho
Gente Povo Todo Dia, de Fi­lipe Chi­nita – Pá­gina a Pá­gina

Can­tata, Pranto e Louvor, de Fi­lipe Chi­nita e Ma­nuel Gusmão – Pá­gina a Pá­gina

Se­aras Ver­me­lhas de Abril, de Fran­cisco do Ó Pa­checo – Pá­gina a Pá­gina




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